quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Não é de hoje

As ruas do subúrbio e seu péssimo estado de conservação. Queixa corrente e freqüente dos moradores, quase sempre ignorada. Um problema ultrassecular. Sem exagero. Senão, vejamos.

Certa feita, um escritor que residiu por estas bandas de cá nos brindou com uma crônica em que um defunto, Antônio da Conceição, endereça uma carta ao prefeito. Na missiva ao “Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal”, o falecido morador da Boca do Mato relata ter sido em vida um “um pobre homem” que nunca dera “trabalho às autoridades públicas nem a elas fizera reclamação alguma”. O remetente julgava – segundo revelam suas próprias palavras – que seu “único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não”.

Esperava o defunto que sua vida santa, em obediência “às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos”, aliada às privações e necessidades a que fora submetido, garantisse-lhe a “mais dúlcida paz depois” de seu passamento. Entretanto, ao ir desta para uma melhor, Antônio da Conceição se vê impedido de seguir direto para o céu, como planejava. Antes – avisa-lhe São Pedro – será preciso se “purificar um pouco no inferno”. E o falecido culpa o prefeito por tamanha mudança em seu projeto de morte.

O protesto não é descabido, uma vez que Antônio da Conceição fora interditado de adentrar o paraíso celestial por conta das arranhaduras que levava no corpo. É que os machucados fizeram o santo supor que o até então comportado lustrador de móveis brigara depois de defunto. E as marcas, explica o finado, eram responsabilidade do prefeito:

“A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a rua José Bonifácio, em Todos os Santos.

"Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e largura, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola, sofre o diabo.”

Pois é, Lima Barreto já reclamava do desleixo no calçamento das ruas do subúrbio. Em 1920.

Há coisas que parecem não mudar jamais.

P.S. Se você quiser ler na íntegra a crônica "Queixa de defunto", de Lima Barreto, clique aqui.

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