quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Pela janela

É a última meia hora da tarde de uma sexta-feira. Emoldurada pela janela com cortinas entreabertas, uma mulher faz anotações numa caderneta com o ar de quem espera o marido chegar do trabalho. A janela fica no segundo ou terceiro andar de um edifício, não tenho certeza, e a mulher, uma senhora, veste vermelho e tem os cabelos curtos e claros. Louros, talvez. Não há problema em chamá-la de Dalva.

De tempos em tempos, dona Dalva desvia os olhos da folha e se debruça em direção à rua, atraída pelo burburinho que efervesce lá embaixo, certamente lembrando de quando ainda havia capinzal onde hoje as pessoas caminham, se apressam, compram, dirigem, se encontram. Às vezes, dona Dalva deixa a janela por alguns instantes e some dentro do apartamento, para reaparecer em seguida. Ela é uma senhora de alma tranqüila, resignada, discreta. O marido, aposentado, continua trabalhando. Até alguns anos atrás, ela até preferia assim, mas com os netos crescidos e ganhando o mundo, o dia alongou para dona Dalva. Desde que os filhos nasceram, a boa senhora se acostumou a dedicar seus cuidados a alguém que não fosse ela. Já pensou se a neta, na véspera de viajar, não lhe tivesse levado o casal de calopsitas com o pedido de que, por favor, olhasse pelos pássaros durante os dois anos que passaria estudando na Espanha? Não fosse isso, dona Dalva contaria apenas com a companhia de Patrick, o basset que o filho do meio deixou com ela ao se mudar para a Barra.

Quando dona Dalva acorda, na maioria das vezes, o marido já saiu para o trabalho. Na cozinha ainda sonolenta, ela toma o café da manhã enquanto conversa com o casal de calopsitas, que mora na área de serviço. Dona Dalva nunca lembra se é o macho ou a fêmea que se chama Gota de Leite, mas eles não parecem se importar. Enfim, um deles tem esse nome, o outro é Bola de Neve e os dois ganham bocadinhos do pão que a senhora todos os dias compra na padaria que fica na esquina da Dias da Cruz com Dona Claudina.

O apartamento onde dona Dalva e o marido moram é amplo e claro, desses de prédio antigo que já não se ergue mais, depois que as construtoras passaram a economizar no metro quadrado. Como os netos assumiram o próprio nariz, a senhora tem conseguido cuidar melhor da casa, conforme aprendeu que deveria. Na semana passada, começou a se ocupar da decoração para o Natal, pareceu-lhe boa idéia renovar os enfeites, comprar uma árvore mais moderna e uma guirlanda nova para a porta principal, o marido sempre apreciou tanto as festas de fim de ano. Também tomaria as medidas da janela da sala para ali colocar pisca-piscas coloridos. Faria tudo sozinha, porque assim seria melhor, e observada de perto por Patrick, mais apegado a ela do que sua própria sombra.

Mesmo o apartamento sendo grande e dona Dalva já contando uma certa idade, ela continua a cuidar de tudo sem a ajuda de ninguém. Não quer nem ouvir falar em empregada, para que, se está mais do que acostumada à rotina da casa e ninguém a cumpriria melhor do que ela? Depois de tirar a mesa do café e lavar a louça, varre o chão e espana o pó dos móveis. Em seguida, cuida da roupa suja, já estendida na corda antes de preparar o almoço, que cozinha em quantidade a render para o jantar. À tarde, passa roupa assistindo à reprise da novela. O banheiro, limpa três vezes por semana e os vidros, uma. Isso tudo sem esquecer de cuidar de Patrick, que passeia de manhã cedo e à tardinha, Gota de Leite e Bola de Neve. Ainda sobra tempo para dona Dalva tomar um bom banho, vestir uma roupa limpa, tirar os rolinhos do cabelo, se perfumar e no fim da tarde ir à janela esperar o marido, como sempre gostou de fazer. Neste momento, ela está anotando mais alguma coisa na caderneta.

8 comentários:

Sonia Sant'Anna disse...

Minha primeira vez aqui. Taí, gostei.

Anônimo disse...

Gostei muito da D. Dalva. Espero que ela apareça mais por aqui.

Anônimo disse...

Sonia e Edu, obrigada por terem passado por aqui.

Bia Pinheiro disse...

Um doce a Dona Dalva!

Anônimo disse...

Bia Pinheiro, obrigada pelo comentário tão delicado.

Sonia Sant'Anna disse...

Já vi que a Bia seguiu minha indicação e andou por aqui.

Alexandre Kovacs disse...

Rê, cheguei por aqui através da Sonia. Achei excelente este texto sobre a dona Dalva.

O Méier está no imaginário de todos os cariocas. Eu, por exemplo, me formei em engenharia pela Gama Filho, no bairro de Piedade que é um pulo do Méier.

Voltarei outras vezes. Parabéns!

Anônimo disse...

Sonia, obrigada por indicar o blog, que ainda é tão jovem, mas, graças a você, tem recebido mais visitas do que eu imaginava.

Kovacs, seja bem-vindo! Fiquei muito feliz com o seu comentário, obrigada. Olha que coincidência, quando li seu comentário estava terminando o post acima, que fala sobre a Piedade.